Na linha de frente com pessoas em situação de rua, imigrantes e refugiadas/os

A edição #199 do Jornal Psi é especialmente dedicada à Psicologia antirracista. Nela, ganha foco o urgente e necessário debate público em torno das questões raciais, deixando evidente o quanto precisamos avançar. A Psicologia, como ciência e profissão, não pode se eximir de sua responsabilidade de enfrentar o racismo estrutural que provoca imenso sofrimento.

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Na linha de frente com pessoas em situação de rua, imigrantes e refugiadas/os

Dentro desta importante temática, você acompanhará discussões diversas no campo da Psicologia e das relações raciais, como o protagonismo de psicólogas negras e indígenas nos cuidados com a saúde mental destas populações; a Subsede Baixada Santista e a relação com as comunidades indígenas do território; o cotidiano de profissionais que atuam com pessoas em situação de rua, imigrantes e refugiadas; o atendimento psicológico na adaptação de imigrantes ao Brasil; referências sobre Psicologia, relações étnico-raciais e povos tradicionais.

As páginas do jornal também abordam o processo de elaboração das Referências Técnicas do CREPOP, os 40 anos do Jornal Psi e os preparativos para o Congresso Regional da Psicologia (COREP).

A edição está disponível em versão digital e em breve a versão impressa chegará às casas das/os psicólogas/os e empresas com inscrição ativa no Conselho, em todo o Estado de São Paulo.

Na linha de frente com pessoas em situação de rua, imigrantes e refugiadas/os

acesse a edição na íntegra

Parcelas da população que já viviam em situação de vulnerabilidade social viram suas condições de vida agravadas com a pandemia da covid-19 e tiveram sua saúde mental ainda mais comprometida.

Como psicólogas e psicólogos constroem a atuação profissional nesses contextos?

Aqui apresentamos depoimentos de profissionais que atuam na linha de frente do atendimento de dois grupos historicamente marginalizados e discriminados: pessoas em situação de rua, imigrantes e refugiadas/os.

Lineth Bustamante, formada em Psicologia e Serviço Social, e o psicólogo Rodrigo Xavier (CRP 06/114686) falam sobre os desafios no dia a dia para garantir o direito à saúde mental dessas pessoas, as dificuldades enfrentadas por elas na busca de tratamento para o sofrimento psíquico e como o racismo e o preconceito impedem a atuação plena das Políticas Públicas direcionadas àqueles públicos.

Me formei em 2012 e já em 2013 comecei a trabalhar com esta população de rua. Trabalho na região da Cracolândia. É consultório de rua com foco na saúde. A gente encaminha para UBS, para tratamento no CAPS ou para a Santa Casa. Eu faço parte de um GT que acolhe mulheres gestantes e puérperas.

Em relação aos desafios, tem toda a questão da estrutura que dificulta muito. Tem uma população de rua muito grande para poucos centros de acolhida.

Ainda mais agora, com a pandemia, cresceu muito mais. Muitas pessoas perderam o emprego e não tinham mais como arcar com aluguel, com custos de comida e foram parar nas ruas. Há muitas famílias pai, mãe e filhos – na rua, diferente do perfil de uma pessoa que está há mais tempo lá, que faz uso de drogas há alguns anos ou teve histórico de passagem pelo sistema penitenciário.

Os postos de saúde (UBS), que já são naturalmente cheios devido à grande demanda, com o atendimento à população de rua, isto intensifica muito mais.

E com a pandemia, os serviços de saúde ficaram ainda mais cheios.

O racismo e o preconceito muitas vezes empurram essas pessoas para essa situação. Muitas estão ali porque tiveram condições de vida precárias, desemprego, conflitos familiares, sofreram violência doméstica e até violência nas ruas de gangue ou polícia.

Este preconceito e racismo também complicam na retomada dessas pessoas para o convívio. Uma pessoa negra homossexual ou transexual já é estigmatizada e sofre preconceito. Essa pessoa em situação de rua com histórico de uso de drogas multiplica por dez esse preconceito. O preconceito e o racismo não só empurram essas pessoas para lá, como as mantêm ali.

Nem todos os moradores de rua são usuários ou têm passagem pelo sistema penitenciário, mas é um número significativo. Então tem uma questão que é o sujeito que está institucionalizado. Uma pessoa que começou a usar [drogas] na adolescência e frequentou um CAPS ou uma comunidade terapêutica por muitos anos. Essa pessoa tem dificuldade de sair desse ambiente porque os amigos que ela fez e as pessoas com quem se relacionou também são deste meio.

Acho que nós, como psicólogos, temos que ter esse olhar do indivíduo. Ver que não é só mais uma pessoa que está ali, não é só estatística. Tem uma pessoa ali que tem uma história. Ela não parou ali por acaso. “Como você veio até aqui? Foi questão de con-
flitos familiares? Pelo uso de drogas? Por desemprego?” Então eu escuto.

Eu gosto muito da troca, de ouvir as pessoas, ouvir o que elas têm a contar, as visões que elas têm... Porque, de fato, é uma coisa muito diferente do que a gente vive. A gente está aqui nesta vida regrada, acorda para trabalhar todo dia no mesmo horário. É muito legal ouvir outro lado e se surpreender. Conheci músicos que se apresentaram em lugares valorizados, pessoas formadas, um rapaz que foi vice-campeão de remo pela USP. Histórias muito legais e diferentes. Eu gosto muito desta variedade de histórias de vários lugares do Brasil e tem estrangeiros também.

Pessoas de todos os lugares, religiões e etnias. É uma troca. Não me sinto como um messias ou um salvador. Me vejo como um facilitador. Caso ele queira, eu posso ajudar nisso, mas é só. Não vou salvar a vida de ninguém e vejo isto: uma pessoa que trocou muito com outra pessoa ali. É um encontro de duas pessoas trocando saberes. Eu com o meu saber da Psicologia e ela com o saber dela adquirido ao longo do tempo da vida. Essa é sensação”.

Na linha de frente com pessoas em situação de rua, imigrantes e refugiadas/os

A questão migratória me mobilizou muito desde que cheguei aqui porque eu sou imigrante. Eu queria entender como estas instituições que trabalham com imigrantes veem esta questão da saúde mental.

Muitos imigrantes vêm de uma situação já vulnerável em seu país de origem, atravessam fronteiras muito perigosas, enfrentam situações traumáticas. E aí, quando chegam no país de destino (neste caso, o Brasil), novamente enfrentam situações de discriminação, de privação de direitos e de experiências traumáticas.

São uma série de situações que, obviamente, vão ter impacto na saúde mental destas famílias. Famílias que já estão muito fragilizadas, porque quando você migra, deixa família, muitas vezes deixa pais doentes... Muitos deles, inclusive, deixam seus filhos sob o cuidado
de outras pessoas, de outros familiares. Então, a parte emocional dessas pessoas já está muito fragilizada. Elas não têm nenhum tipo de suporte nesse sentido e tentam mitigar todas essas necessidades psicológicas somente com o trabalho. Trabalham muitas horas,
exaustivamente, de segunda a sábado, e poucas vezes têm descanso de lazer para conhecer a cidade, para aprender o idioma ou para procurar novas oportunidades. E isso tem um impacto na saúde mental.

Os imigrantes são vistos como alvos de estudos e projetos, mas a questão da saúde mental é muitas vezes negligenciada. Existe esta dificuldade dentro dos espaços acadêmicos de preparar os profissionais na questão da migração. Quando não se tem esse tipo de formação, não se fala sobre a questão migratória e, sobretudo, o que isto demanda e que tudo isto implica, nos deparamos com profissionais que não são sensíveis a esta questão da migração. Muitos desses são, inclusive, aqueles que dizem não entender a questão social, que vão discriminar, ter preconceitos e reproduzir sistemas de opressão – inclusive nestes espaços onde, supostamente, os migrantes são bem-vindos.

É importante que todos os profissionais, não apenas da saúde mental, estejam cientes disso e trabalhem conjuntamente para que nos tornemos uma sociedade intercultural, onde as diferenças sejam aceitas, onde as pessoas sejam tratadas como seres humanos. Não como recursos humanos ou como estranhos, alguém que vem pegar o trabalho do outro, que vem aumentar a carga do sistema público, mas como alguém que vem para contribuir com esta nova sociedade.

Existem certas barreiras institucionais e estruturais de acesso à saúde mental. Primeiro que os imigrantes desconhecem como isso funciona, muitos deles desconhecem o acesso à própria saúde. Não sabem que eles têm direito a irem a um posto procurar vacina ou médico. Quando chegam, já em estágio muito avançado de comprometimento da saúde – e não só física.

Eu conheci bolivianos que morreram por problemas de apendicite porque não chegaram a tempo ao hospital. As famílias não procuram ajuda.

Quando procuram ajuda, os problemas de saúde mental já chegaram a um limite muito mais profundo e muito mais complexo. Elas sentem dor de cabeça, geralmente vão ao posto de saúde com dores no corpo e os médicos não conseguem identificar porque são somatizações. São problemas psicológicos que são somatizados no corpo e que essas pessoas não conseguem identificar que se trata de um sofrimento psicológico e precisam procurar ajuda para solucionar.

Muitos reconhecem que precisam de ajuda psicológica, mas não sabem aonde ir. Muitos desconheciam o que era CAPS. Se procuravam um psicólogo, pediam para passar primeiro com o clínico e aí eles desistiam e voltavam para casa. E, se conseguiam passar por um clínico e este encaminhava para um psicólogo, demoravam para conseguir o atendimento.

Quando conseguiam, por fim, acessar um psicólogo, muitas vezes enfrentavam outra barreira, a linguística. O cuidado com a saúde mental passa por umdiálogo. Você tem que expressar o que está sentindo com palavras. É uma intervenção dialogal. Com essa barreira do idioma, as pessoas não agendavam a segunda consulta e ficavam tentando superar sozinhas.

À parte disso, muitos grupos comunitários, grupos de migrantes, têm um certo estigma com os profissionais da área da saúde mental. Acham que os psicólogos e os psiquiatras só estão aí para atender loucos. A gente faz um trabalho de desconstruir esse tipo de estigma e tentar, de alguma maneira, motivar que eles procurem ajuda principalmente em instituições cujos profissionais são mais sensíveis com a situação dos migrantes.

A competência cultural, isto é, entender esses imigrantes a partir das referências culturais dos próprios imigrantes e não das referências culturais do profissional também é muito importante. Aquilo que funciona no atendimento de saúde mental e física aqui no Brasil pode ser que não tenha resultados em imigrantes que vêm de uma outra realidade.

Por exemplo, mulheres imigrantes bolivianas que, muitas vezes, preferem ganhar seus filhos em um espaço que não é adequado, como um hospital, porque elas não são respeitadas na sua cultura. Dentro da comunidade boliviana, existem culturas e origens étnicas muito diversas e diferentes formas de dar à luz. Quando elas vão aos hospitais, elas se sentem humilhadas porque ganharam o filho de uma determinada forma.

É importante compreender qual a realidade cultural dessa família. Escutar o que ela tem a dizer e seus saberes para que sinta mais confiança de poder contar o que está acontecendo. Elas podem nunca mais voltar para uma consulta psicológica porque sentiram que a sua fala não tem cabimento, não tem importância.

Por isso que no meu doutorado busco entender como os psiquiatras estão sendo preparados para lidar com populações diferentes, no caso, migrantes e refugiados, e como têm lidado com esta questão cultural. E, de alguma maneira, tentar provocar a instituição de ensino a mudar a grade curricular e implementar algumas coisas que permitam dialogar sobre essas questões, principalmente em um contexto de migração tão intenso quanto o Brasil vivencia – e que vivenciou sempre”.

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fonte: crpsp.org

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